chovia
e, sobre o papel, as palavras dançavam.
era 1997 e
eu mal conseguia escrever.
o fato é que a gente escreve sobre o tempo
sem se dar conta do que é o tempo
e tudo fica tão complexo quanto.
mas eu me lembro bem:
eu ainda tinha pai, mãe, irmãos,
tios, avós, primos,
passarinhos na gaiola e
caixinha de brinquedos.
de todos os anos, eu só tinha 10
e me reinventava o tempo todo
e me esquecia logo depois
e eu queria ser o grande herói da ciência
e já colecionava quadros negros
e já brincava de escolinha.
verdade é que os anos escolares iniciaram-se praticamente ali:
eu acordava de repente e “pluft”: me entendia por gente.
e era assim todas as manhãs,
um personagem para cada dia.
///
naquele tempo, eu me disfarçava sob longos cabelos castanhos
tão encaracolados quanto os que o Roberto cantou
e debaixo dos caracóis, mais de mil histórias,
mais de mil segredos,
quase nenhum amor.
eu mal podia esperar pelos anos seguintes.
nada era vindouro, tudo era aqui e agora.
tinha desejos de menino, vontades de menina
e um vinil do Caetano.
eu falei da infância porque a vida ainda não fazia sentido.
é meio como as palavras: só fazem sentido em sua relação com o tempo.
o fato é que a gente fala da infância
sem se dar conta do que é a infância
e tudo fica tão complexo quanto.
///
em 1997 eu li Monteiro Lobato,
visitei – pela primeira vez – um sítio,
me perdi no pomar
(mas me lembro bem do cheiro do laranjal)
eu brincava com a terra
e a terra brincava com meu corpo
como se tudo fosse d'uma matéria só
(e ao mesmo tempo não fosse e não era)
plantei bananeiras, subi nas mangueiras
palmeiras gigantes
aves que aqui gorjeiam
o canto de um Sabiá
um rio cortando a alma
atravessando o jardim.
era tarde, em 1997 eu descobri o quintal
e dali eu desenhava o céu.
não sei se ainda chovia,
mas era abril.
tinha nuvens
e um aquário cheio de peixes
e um peixe cheio de asas
e uma casa maior que o mundo.
a verdade é que a gente conta dos sonhos
sem se dar conta do que são os sonhos
e tudo fica tão complexo quanto.
era 1997
e eu me deitava na grama.
pensava nos barquinhos de papel
pensava nas palavras dançando na chuva
pensava no poema tomando (o) corpo
e as pipas coloridas ao longe
deixavam o céu como eu ainda vejo hoje.
a propósito, uma rosa é uma rosa
é uma cor é um azul é pau é pedra
é o fim do caminho...
///
voltando pra casa,
pensava no que contar quando voltassem as aulas,
pensava no que escrever quando me traçassem as linhas.
“eu não sou Deus e não escrevo torto.”
foi assim que comecei a história.
o fato é que a gente lembra da história
sem se dar conta do que é a história
e tudo fica tão complexo quanto.
não sei, só sei que foi assim, fim que foi.
aqui, o ano se acabou.
aqui, o ano acabado.
aqui o ano acaba.
era abril,
em 1997.
///
*Poema escrito para o projeto "Onde estará 1997?" criado por Júlia de C. Hansen